quinta-feira, 8 de julho de 2010

"E exigimos o eterno do perecível, loucos." Caio Fernando Abreu


-Doutor, estou com taquicardia e sinto calafrios pelo corpo.
-Isso acontece sempre?
-Não, só em alguns momentos.
-E quais são as ocasiões?
-Antigamente, era toda vez que o celular tocava.
-Certo. Demorava para passar?
-Passava rápido. Eu tomava os remédios com certa frequência.
-E por que você parou com eles?
-Minha fonte secou.
-A fonte secou?
-Eu era viciada, estou em reabilitação.
-Viciada??
-Sim, meu vício não era ilícito. Mas é uma droga.
-E quais eram os seus vicíos?
-Eu era viciada naquele sorriso. Naqueles olhos...
-E o que aconteceu?
-A endorfina e a dopamina foram embora. Procurei usar um genérico, até mesmo um similar, mas não fizeram o mesmo efeito.
-Foram embora? Mas como isso é possível?
-Numa noite de sexta feira cinzenta. Tempo abafado. Primavera. Lembro-me com tristeza daquele dia. A partir de então, entrei em crise. Crise de abstinência.
-Tudo bem. Mas ainda não entendi tudo isso.
-Doutor, quando ele foi embora, perdi minha alegria.
-Diagnóstico: paixonite aguda do miocardio. Isso é muito comum.
-Não é doutor. Eu ainda não superei.
-E por que você sua crise voltou?
-Tive uma recaída. Foi apenas uma dose.
-Recentemente?
-Ano novo, velhos hábitos.
-Tentou fazer terapia?
-Comecei semana passada.
-Gostou?
-Prefiro o meu diário.
(...)
-E como os sintomas passam hoje em dia?
-Música. Antigamente, uma dose de sorrisos ou até mesmo algumas palavras me ajudavam. Mas foi como eu disse, doutor... minha fonte foi pra outro lugar... longe de mim. Às vezes eu procuro algum resquício, mas só consigo diálogos vazios.
-Há quanto tempo está assim?
-Verão. Outono. Inverno. Primavera. Verão...
-Ahh... amor não correspondido?
-Sim.

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